quarta-feira, 23 de março de 2011

AVO 02 - Há mais marés ...

Pois é. O homem põe e Deus dispõe. Afinal acabei por ter de abandonar o meu companheiro no Recife, agora que já estava tudo a ficar afinado e as rotinas estabelecidas.Mas o esqueleto deu de si  e, para evitar piores consequências, lá voltei ao estaleiro. Felizmente apareceu um substituto, o transalpino Luca, rapaz jovem e que o Rui aprovou logo de seguida. Pareceu-me um marinheiro apto (gostei do nó de escota dobrado) e julgo que será uma óptima ajuda para o skipper. O Thor assim o exige para consumar a grande volta. A travessia do Atlântico Sul, no que me coube, foi uma boa experiência, salpicada por inúmeros episódios. Sta. Helena, a única escala, foi uma novidade. Um recuo no tempo,  para aí uma trintena de anos. Deixou-me aquela impressão do ultimo reduto de reclusão política ou albergue dos despromovidos e castigados, espécie de “tarrafal” britânico, claro que mais suave, organizado e evoluído. Contudo, nada de ATM’s ou celulares, acesso algo limitado á internet, bem como a dependência dum navio logístico que a visita mensalmente. Mesmo assim será, pela posição, uma boa escala, permitindo o repouso e o reaprovisionamento, onde só os mais perecíveis podem vir a faltar. O reabastecimento e aguada é feito no fundeadouro, mas como a mareta estava calma, não trouxe problemas. No final, até fomos bafejados pela sorte, pois a quebra do cabo da nossa poita, arrastou-nos para fora do ancoradouro e, felizmente, não abalroamos ninguém. E foi num repente. Sem o alarme de fundeio, noite luarenta e calma, o Rui veio espreitar cá fora e descobriu que “a ilha lhe parecia mais longe” e ”os barcos não estavam na mesma posição”. Largamos a bóia com o resto do cabo e fomos à procura de outra poita, agora para ficar. Sorte, também tem que haver. Como um mal nunca vem só, cerca de um dia após a largada de Sta. Helena, numa mareação folgada, ouvimos um estalo vindo do lado da proa e chamei a atenção do Rui para a posição anormal do tambor do enrolador da genoa, que tinha tombado para bombordo. Uma rápida inspecção permitiu ver que o estai real estava partido e que o conjunto estava suspenso na adriça da genoa. Esse conjunto foi arreado na manhã seguinte e depositado ao longo do convés, amarrado ao varandim de bombordo, saindo ainda pela ré aí uns bons 3 metros. Foi providencial a instalação do estai volante, permitindo assim que o mastro ficasse seguro e pudesse ser ajustado para a mareação com os alísios e o uso predominante do “parasailor”, arma que já vínhamos afinando no trajecto anterior e que tornou o nosso percurso até às costas baianas num verdadeiro cruzeiro de “plaisance”. Estabilizados, com o restaurante “Plano Inclinado” mais nivelado, conseguimos alguma regularidade no progresso das singraduras, salpicada por algumas “recolhas” inopinadas, fruto de curtas “squalls” com que os mares entretanto mais quentes nos iam presenteando. E enfim, numa grande acalmia, lá vislumbrei a costa dos coqueiros (visão algo diferente do que conheço, apesar de lá residir há uns anos) e após cruzarmos a linha de chegada, em frente ao farol da Barra, lá fomos atracar no pontão do Centro Náutico da Bahia, onde nos esperavam, alem dos incansáveis Susana e  Paul (organizadores), as indispensáveis e bem merecidas caipirinhas. E, como tinha prometido ao Rui, fomos com a Berta (minha cara-metade) ao Juarez, ali bem próximo, para comer o melhor bife de Salvador. Convém anotar. A estadia em Salvador, que já foi descrita nos relatos diários, teve o seu lado positivo – dar ao Rui a possibilidade de conhecer parte da cidade que foi a primeira capital do Brasil, dos seus arredores (Recôncavo, Itapuã, Morro de S. Paulo) e também do modo de vida baiano, da sua gente e da sua cultura multi-facetada, incluindo, entre outros aspectos, a culinária, com a sua diversidade de sabores e temperos. Penso que gostou e, como também andou por terras angolanas, pode estabelecer as fortes ligações que lá e aqui deixamos. A parte mais negativa e para a qual alertei, alimentada pela vizinhança do Carnaval, ali mesmo à porta, teve a ver com as alterações que induz no modo baiano de fazer as coisas, ou seja, um pouco lenta e ao correr do sabor. Tal foi o caso da recepção, montagem e instalação do novo conjunto estai/enrolador, cuja demora foi desgastante, com obstáculos difíceis de contornar. Na verdade, a montagem e afinação acabou por ter lugar na quinta-feira, noite dentro, e ainda bem, pois com a folia carnavalesca soteropolitana ao rubro, corríamos o risco de só poder largar depois da quarta-feira de cinzas e nunca chegaríamos ao Recife a tempo da largada para Grenada. Enfim, um pouco de sorte, no meio de tanta incúria e demora. Um ensinamento a guardar. Mas lá seguimos para o Recife. Agora, com tudo contra – vento, mar, corrente e algumas “squalls” para enfeitar e molhar. E o motor, que até então se tinha comportado brilhantemente, começou a dar das suas e parou repetidas vezes, mormente quando se alterava o regime. Falha de alimentação, sujidade, filtros, enfim uma variedade de hipóteses se apresentavam, causando alguma apreensão, particularmente na chegada ao porto do Recife durante a noite. E foi o caso, obrigando-nos a desenrolar de novo a genoa e a sair o porto, até conseguir estabelecer um regime que nos permitisse seguir até à poita de amarração no meio do canal (com os decibéis incríveis do Marco Zero, recinto ribeirinho onde o Carnaval fervia). Tudo bem, mas após várias tentativas infrutíferas, acabamos por largar o ferro e por lá pernoitamos (com musica, claro ), com vista a seguir bem cedo, na maré cheia (único processo), para o Cabanga Yacht Club do Recife. E assim foi, com os nossos amigos do Eowin e do Kalliope todos à espera, para ajudar na entrada e amarração. Havia no entanto outra coisa, que nos trazia alguma preocupação e que o Rui queria também verificar. Tratava-se do sistema de arrefecimento do motor, em que a saída de água e o aparecimento exagerado de fumo indicariam o mau funcionamento do mesmo. Durante a travessia tinha substituído o “impeller” mais do que uma vez, pois após algum período de funcionamento, apresentava-se sem palhetas, deficiência que atribuía a má circulação no circuito de arrefecimento. Assim (e nem tudo corre mal) conseguiu que o Sr. João, um excelente técnico de motores pernambucano, em plena terça-feira de Carnaval, lhe fizesse uma inspecção aos sistemas de alimentação e de arrefecimento, os quais ficaram a funcionar na perfeição, dando posteriormente lugar a um curto episódio, que não quero deixar passar. De facto, o Sr. João, com a limpeza que realizou no sistema de arrefecimento, conseguiu reunir um monte de pedaços de “impeller”que o Rui colocou numa taça e deixou no poço, tendo em vista poder mostrar aos amigos porque é que a água não corria e havia tanto fumo. Eis se não quando o nosso amigo andaluz Emílio, a pretexto duma questão referente ao reabastecimento de combustível, se aproximou da popa do Thor no seu “dinghy” e o Rui, pressuroso e atento, agarrou na taça e levou-a para ele ver. O mesmo, sem despudor, meteu a mão nas “tapas” e levou uma à boca, a qual, de imediato expeliu, com o impropério devido. O caso virou hilário e decidi intitula-lo de “O caldo de impellers”.
Pois é, mas contando com a ajuda de um amigo de longa data que tenho no Recife, lá fui fazer as ultimas compras para o completo reabastecimento do Thor, acompanhando o Rui nos últimos preparativos para a largada no dia seguinte e foi a despedida. Tive pena de o não poder acompanhar, pelo menos nesta ultima fase, como tinha previsto e supunha ser possível.
Conforme já tinha mencionado nas primeiras mil milhas e que reitero, o Thor é um bom barco, resistente, bem equipado, bem monitorado e mantido, e o Rui um bom skipper, atento, planeando e conduzindo todas as manobras com cuidado, antecipação e segurança. Penso que a experiência que obteve nesta volta e os conhecimentos que aprofundou, a que alia um conhecimento profundo do barco e das suas capacidades, permitem que agarre as situações mais complicadas com bastante destreza. Recordo aquela “magnífica” cambadela do “parasailor” e o ar de jovialidade e de satisfação. Sem espinhas!!!
Homem e nave perfeitamente integrados, perseverança e vontade de concluir o “seu projecto”
são os ingredientes necessários. Força companheiro, que Oeiras é já ali.
Foi um prazer navegar contigo e cá irei acompanhando a tua odisseia, desejando que tenhas ventos e mares de feição e chegues a bom porto, para podermos ouvir as histórias.
Voltei para o estaleiro, mas ainda não desisti. Há mais marés….
Um abração, tudo numa boa e “tanti auguri”

Tozé

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